Santa Casa da Misericórdia de Santos: Sinopse Histórica
Acta Medica Misericordiae 1 (1):7-10, Out 1998
Resumo
Braz Cubas, fidalgo português e líder do povoado do porto de São Vicente, posteriormente vila de Santos, auxiliado por outros moradores, iniciou em 1542 a construção da Santa Casa da Misericórdia de Santos, o mais antigo hospital brasileiro, inaugurando-a em novembro de 1543. D. João III concedeu-lhe o alvará real de privilégios em 2 de abril de 1551. A construção do segundo prédio foi concluído em 1665, no Campo da Misericórdia, atual Praça Visconde de Mauá. O terceiro, inaugurado pelo Dr. Cláudio Luiz da Costa em 1836 junto ao morro de São Jerônimo, atual Monte Serrat, foi parcialmente destruído por um deslizamento de terra em 1928. O conjunto atual, único remanescente, foi inaugurado pelo Presidente Getúlio D. Vargas em 1945, com 1400 leitos.
Descritores: Hospitais filantrópicos. História da Medicina do século 16.
AS MISERICÓRDIAS
Há quinhentos anos, em 15 de agosto de 1498, a primeira Irmandade da Misericórdia era fundada em Lisboa por Dona Leonor de Lencastre, que regia o trono de seu irmão, D. Manuel, o Venturoso. O trinitário espanhol Frei Miguel de Contreras foi nomeado provedor. A Irmandade assumiu inicialmente a manutenção do Hospital de Nossa Senhora do Amparo e em 1564 passou a administrar também o Hospital Real de Todos os Santos de Lisboa, cuja construção fora iniciada por D. João II em 1492 e terminada por D. Manuel em 1501. Este monarca e seus sucessores incentivaram a criação de outras Misericórdias em Portugal e em todas suas colônias, incluindo o Brasil. Sua organização assemelhava-se à de uma antiga irmandade de Florença, havendo suspeitas de que a formação desta tenha sido inspirada em relatos de observações feitas por viajantes na China. Por ocasião da morte de D. Leonor, em 1525, havia cerca de sessenta Misericórdias em atividade.
A DESCOBERTA E O INICIO DA COLONIZAÇÃO
Há milênios, migrantes procedentes da Ásia chegaram à região. Eram os "homens dos sambaquis". Posteriormente vieram os membros de uma corrente migratória procedente da Mongólia, que já utilizavam o arco e a flecha, canoas, redes, e que implantaram o cultivo de milho e mandioca. Os nativos, conhecedores da flora local, contribuíram com a farmacopéia dos futuros colonizadores.
Em 1486, o navegante português Afonso Sanches, desviado de sua rota por um temporal, atingiu o continente americano. João Fernandes Lavrador e Pero de Barcelos, também portugueses, chegaram ao continente em 1492. Em 12 de outubro de 1492, Cristóvão Colombo, a serviço da coroa espanhola, desembarcou nas Antilhas. Atendendo pedido da Espanha, o papa Clemente VI estabeleceu concessões com a Bula Intercoetera, de maio de 1493, rejeitada por Portugal. Em sete de junho de 1494 as partes litigantes firmaram um tratado na cidade espanhola de Tordesilhas, tendo como linha demarcatória um meridiano situado a 370 léguas do ponto mais ocidental das ilhas do Cabo Verde, dividindo entre si as terras descobertas e a serem descobertas, ficando Portugal com as situadas a leste e a Espanha com as localizadas a oeste. Duarte Pacheco Pereira, em 1498, e André Gonçalves, em 1499, realizaram viagens de reconhecimento às terras portuguesas no continente americano.
Pedro Alvares Cabral deixou Portugal em 9 de março de 1500 com destino a Calicut, na Índia, seguindo uma rota previamente descoberta por Vasco da Gama. No percurso, apesar de contar com numerosas caravelas, experientes navegantes, bússolas e outros instrumentos de navegação, a poderosa armada teria desviado acidentalmente em direção sudoeste, vindo a descobrir o Brasil a 21 de abril. Na realidade, Cabral cumpria sua missão de oficializar a descoberta das terras portuguesas no Novo Mundo, assumindo seu domínio, antes de seguir viagem.
Gaspar de Lemos, que viera na armada de Cabral, retornou em 1501 trazendo o florentino Américo Vespúcio para cartografar a costa e demarcar as terras. No que acreditavam ser o limite meridional dos domínios portugueses, deixaram alguns degredados, entre os quais o bacharel e mestre Cosme Fernandes, cristão-novo condenado por suposto delito religioso, que iriam iniciar os povoados de Cananéia e São Vicente. Outras expedições trouxeram degredados e alguns colonos, mas o interesse maior da coroa portuguesa no início do século XVI estava no comércio com Índia, considerado mais lucrativo. Franceses, ignorando o tratado luso-espanhol, iniciaram suas extrações de pau-brasil. Francisco I, monarca francês, afirmava desconhecer a cláusula do testamento de Adão que dividia o mundo entre portugueses e espanhóis.
Somente com a expedição afonsina teve início o empenho oficial na colonização e posse da terra. Em 22 de janeiro de 1532, Martim Afonso de Souza fundeou no Porto das Naus, na hoje denominada ilha de Santo Amaro, e desceu em terra. Passados alguns dias, elevou o povoado de São Vicente à condição de vila e capital da Capitania de São Vicente. Aproveitou as construções deixadas por Cosme Fernandes que, denunciado por Montes, fora forçado a retornar a Cananéia. Estabeleceu um conselho, alfândega, nomeou juizes, levantou um pelourinho e uma igreja. Os novos colonos plantaram cana de açúcar trazida da ilha da Madeira e construíram o primeiro engenho brasileiro.
Nessa expedição colonizadora veio o fidalgo Braz Cubas, neto de Nuno Rodrigues, fundador e mantenedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Cubas foi nomeado feitor e fiscal. Em 1534 ou 1535, tendo Martim Afonso deixado a colônia, Cosme Fernandes, ajudado pelo espanhol Rui Mosquera, vingou-se, atacando São Vicente, saqueando e matando Montes e outros colonos.
Luiz de Goes construiu uma capela num outeiro que chamara de Santa Catarina, lembrando o nome de sua esposa. Brás Cubas transferiu o porto de São Vicente da região da atual Ponta da Praia para uma parte mais interna do estuário, próximo a esse outeiro, onde crescia o povoado de Enguaguaçu, e que passou a ser conhecido como povoado do porto de São Vicente ou Nova Povoação .
Em 1541 um maremoto destruiu a casa do conselho, igreja, pelourinho, e outras edificações da vila de São Vicente. Muitos deixaram a vila e mudaram-se para o povoado junto ao porto.
A FUNDAÇÃO DA MISERICÓRDIA E DO HOSPITAL
Braz Cubas, auxiliado pelos prósperos moradores da região, iniciou em 1542 a construção de um hospital, que inaugurou em 1543, provavelmente no primeiro dia de novembro, data comumente reservada para as grandes comemorações. Chamou-o de Hospital de Todos os Santos, inspirando-se no nome do grande hospital de Lisboa e na data da sua fundação. Segundo Frei Gaspar da Madre de Deus, o povoado de Enguaguassu passou a ser chamado Povoado do Porto de Todos os Santos e do Porto de Santos, por aquisição do nome do hospital. Entre 1545 e 1547, o capitão-mor Braz Cubas elevou o povoado à categoria de vila, com o nome de Vila do Porto de Santos.
O primeiro prédio do hospital foi construído no sopé do outeiro de Santa Catarina, em local onde hoje se situa a Rua Visconde do Rio Branco, defronte ao edifício da Alfândega, no centro de Santos. Em 2 de abril de 1551 Braz Cubas conseguiu de D. João III, em Almeirim, o alvará real de privilégios, o primeiro obtido por uma Misericórdia brasileira. Os jesuítas chegaram à região em 1553. A vila, o porto, a Irmandade e o Hospital cresceram sob a proteção do seu poderoso e dedicado fundador.
Felipe II da Espanha, neto de D. Manuel, fez-se rei de Portugal em 1580. Corsários da Inglaterra e da Holanda, inimigas da Espanha, passaram a atacar as embarcações desta e as suas colônias, incluindo o Brasil. Após a destruição da Armada Invencível espanhola no canal da Mancha, em 1588, os ataques marítimos aumentaram, comprometendo o comércio com a Europa e reduzindo as atividades no porto de Santos.
Pela época da morte de Braz Cubas, em 1597, a vila entrava em decadência. O porto estava ocioso e as plantações e engenhos do litoral perdiam seus operários, pois muitos mudavam-se para o planalto, em busca de melhores oportunidades nas prósperas fazendas, entradas e bandeiras. Outro motivo era a fuga das doenças infecciosas, que assolavam as terras quentes, úmidas e alagadiças do litoral.
O SEGUNDO PRÉDIO
Houve um progressivo empobrecimento da comunidade e da Irmandade, sendo que o hospital deixou de possuir edifício próprio em 1620, e em 1654 chegou a paralisar suas atividades. Em 3 de outubro de 1654, D. Jeronymo de Athayde, conde de Athouguia, capitão general do Estado do Brasil, fez provisão de recursos financeiros aos Irmãos da Misericórdia de Santos, atendendo petição destes. Com a provisão governamental foi possível concluir, em 1665, a construção do segundo prédio da Santa Casa e da sua igreja, em local que ficou conhecido como Campo da Misericórdia, posteriormente denominado Largo da Misericórdia, Largo da Coroação e, por último, Praça Visconde de Mauá, junto ao prédio da prefeitura.
O TERCEIRO PRÉDIO
Em 1760 a Irmandade da Misericórdia terminou a construção de sua nova igreja junto ao Morro de São Jerônimo, atualmente Monte Serrat. Chamada inicialmente de igreja de São Jerônimo, era mais tarde consagrada a São Francisco de Paula, que deu nome à Avenida São Francisco.
No período de 1804 a 1830, a Irmandade utilizou o Hospital Militar no edifício do antigo Colégio dos Jesuítas, onde hoje se situa a Alfândega. Em 1835 o provedor Capitão Antonio Martins dos Santos iniciou a construção do terceiro prédio próprio da Santa Casa da Misericórdia de Santos, no sopé do morro de São Jerônimo, junto à sua igreja de São Francisco de Paula. O médico Claudio Luiz da Costa, eleito provedor, inaugurou o hospital em 4 de setembro de 1836. O hospital cresceu, tendo sido criado um pavilhão para os tuberculosos. Um grande deslizamento de terras na face leste do Monte Serrat, ocorrido em 10 de março de 1928, soterrou a parte posterior do hospital e algumas edificações próximas.
QUARTO PRÉDIO, O ATUAL
Em 10 de abril de 1928, a Mesa Administrativa da Irmandade, representada pelo Dr. João Carvalhal Filho, na presença de representantes da comunidade, do Bispo Diocesano D. José Maria Parreira Lara, e do governador Dr. Júlio Prestes, lançou a pedra fundamental do prédio atual, na esplanada do bairro do Jabaquara, distante dos morros para evitar novo soterramento. Em 2 de julho de 1945, o novo prédio foi inaugurado pelo presidente Getúlio Dornelles Vargas. Com capacidade para 1400 leitos, o hospital era um dos maiores e mais bem equipados da época.
HUMANISMO E ENSINO MÉDICO
Tendo prestado quase cinco séculos de assistência, a Santa Casa da Misericórdia de Santos participou de todos os ciclos da história pátria. Cuidou dos fundadores desta Nação - os navegantes lusos, colonos, nativos e escravos. Atendeu aos bravos bandeirantes e aos pobres condenados. Tratou igualmente de nobres e de vassalos do Império Português e do Brasil Imperial. Serviu ao encontro de heróis da Independência e da Abolição da Escravatura, de tradicionais monarquista e de inflamados republicanos. Cuida de patrões e de operários, de empregados e de desempregados. Ponto de união entre todos os segmentos da sociedade, é local de encontro de seus membros quando tomados pela dor e pela doença.
A Santa Casa da Misericórdia de Santos serviu para a prática e o ensino da Medicina quase três séculos antes da fundação da primeira faculdade de medicina no país. Ciência e muito de humanitarismo se praticou em suas enfermarias, nesta que é a primeira escola prática de medicina europeia do país. Entre os mestres desta Escola, inspirados pelas obras das damas portuguesas Isabel de Aragão e Leonor de Lencastre, destacaram-se Braz Cubas, José de Anchieta, Claudio Luiz da Costa e Martins Fontes, entre outros abnegados, alguns de nomes muito ilustres e muitos outros desconhecidos que têm trabalhado nesta Casa de Deus para os Homens.
REFERÊNCIAS
1. Wilma Therezinha Fernandes de Andrade: Conexões da História: Santos e Portugal. Leopoldianum 1996; 22: 67-84.
2. Campos ES: Santa Casa da Misericórdia de Santos, Primeiro Hospital Fundado no Brasil. São Paulo, 1943.
3. Franco J: A Beneficência. Santos, 1951.
4. Frei Gaspar da Madre de Deus: Memórias para a história da capitania de São Vicente, 1797. Editora da Universidade de São Paulo; Belo Horizonte: Livraria Itatiaia Editora Ltda, 1975.
5. Frigerio AMG, Andrade WTF, Oliveira YF: Santos, um encontro com a história e a geografia. Santos: Editora Universitária Leopoldianum, 1992.
6. Ivamoto HS: Médicas, mães paternais, heroínas anônimas. Santos: A Tribuna, 27 de julho de 1996, p A-18.
7. Santos FM: História de Santos, 2a. ed.. São Vicente. São Vicente, SP: Editora Caudex Ltda, 1986.